Enquanto Domingos conversava comigo, contando que estava com 34 anos e retomou os estudos graças à Educação para Jovens e Adultos (EJA), na Escola Lourenço Castanho, lembrei-me do texto de Rubem Braga, “Mar”, que trouxe para os alunos lerem, no qual dizia: “Na primeira vez que vi o mar eu não estava sozinho. Estava num bando enorme de meninos”. Assim foi também para Domingos, que aprendeu a nadar no rio em Araioses, leste de Maranhão, bem na divisa com Parnaíba, no Piauí. Ele contou que o nome esquisito desta cidade vem dos extintos índios Arayos e que a região onde viveu 21 anos é conhecida como “Portal do Delta”. Antes havia perguntado se tinham gostado do texto, que descrevia a primeira vez que o autor via o mar e como ele atravessou todas as fazes de sua vida. Adoraram. Daí, por curiosidade, numa classe com 18 alunos, perguntei quem conhecia o mar e – como a maioria era migrante do interior dos estados do norte e nordeste – apenas 4 tinham visto o mar.
Domingos aprendeu a nadar em rio para ir logo para o mar. Ainda menino, havia perdido o pai. De uma família original de 13 filhos, sendo que cinco morreram crianças, não era todos os dias que iam para a escola, mas sim ajudar na pesca e, em junho, na colheita do arroz. Sua mãe ia junto com ele, o padrinho e um irmão, nas duas funções. Tinha que colocar comida na mesa, e eram muitas bocas, e comprar alguma roupa, quando dava.
“Fomos ao mar. Era de manhã, fazia sol. De repente houve um grito: o mar! Era qualquer coisa de largo, de inesperado.”
Foi com 21 anos que veio para São Paulo, numa viagem de ônibus que levou três dias. Veio para encontrar o irmão Francisco, na busca por uma vida com um horizonte mais amplo. A irmã mais velha, Iraci, havia se formado em Magistério, estudou Pedagogia e deu aulas para EJA. Seu outro irmão, José, o primeiro da escadinha, há anos era já mestre de obras, na Construtora Queiróz Galvão, em Manaus, e mandava dinheiro para a mãe. Domingos chegou na cidade grande sem muita instrução, pois havia cursado apenas até a 7ª série.
“Ondas grandes, cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração apressada, vendo o mar”.
Tal qual as ondas de Braga, Domingos passou por situações limite, tentando trabalhar como peão numa obra, até que surgiu a oportunidade de ser entregador do China in Box. Durante um ano foi pedalando, até que veio a ideia de comprar junto com o irmão uma moto usada. Foi bom, conhecia toda a Vila Mariana e região, ficou na atividade dois anos e meio. Pensou em ser segurança, para ganhar mais, quando apareceu uma vaga no Joaquin’s Restaurante: valeu! Registro CLT, plano de saúde, fixo+taxa de entrega e depois aluguel da moto e vale combustível. Ficou faltando pouco para completar 19 anos registrado.
“Um rapaz de quatorze ou quinze anos que nas noites de lua cheia, quando a maré baixa e descobre tudo e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa roda, amar perdidamente, eternamente…”
Ele casou com Jocilene, que trouxe Tauã, depois vieram Pedro, Arthur e Matheus. Comprou uma casa, não era lá tão boa para a família, vendeu e comprou outra no Jabaquara. Enquanto batalhava aqui, sua mãe, aos 60 anos, voltou para a escola, na EJA de Araioses. Foi o que bastou, o exemplo da mãe, para também voltar a estudar, claro, na EJA. Já lia bastante, pegava livro no lixo, às vezes ganhava de cliente, assim foi apresentado a Jorge Amado, com “Capitães de Areia”, à leitura de jornais, cordel, que gostava, “O crime do Padre Amaro”, de Eça de Queiróz e outros tantos. Adorou voltar para a escola, ter colegas que, como ele, queriam crescer, trocar ideias, fazer o Enem e prestar um bom curso técnico.
“A primeira vez que saí sozinho numa canoa parecia ter montado num cavalo bravo e bom, senti força e perigo, senti orgulho de embicar numa onda um segundo antes da arrebentação”.
Foi um aluno que chamava a atenção pela assiduidade e acrescentava interesse por tudo o que aprendia. Dava para notar que estudava e se preocupava em aprender mais e mais. E um dia perguntei: Que horas você arruma para estudar? – Olha professora, eu entro para trabalhar às 11h da manhã e vou até às17h30 para vir para cá das 18h30 às 21h30. Depois volto para o trabalho e vou até o último cliente. Mas duas vezes por semana, da escola vou direto para casa, fico com a família, que já está indo dormir, e estudo até 3h, 4h da manhã. No fim de semana é hora de ver a lição da casa da garotada, e eu falo para eles que tem que estudar se não vai ter que remar dobrado mais velho e não vai chegar a lugar nenhum.
Lembro do dia em que fui com a escola conhecer o Teatro Municipal, assistir um concerto, ele me contou. Uma beleza e quando você sai à noite é uma tristeza, gente dormindo no chão, comendo resto. Comecei a ver que eu tinha que entender aquele mundo, olhar fora da caixinha, tinha que refletir e questionar o que escreviam nos jornais.