Com o cenário de guerra na Ucrânia na ordem do dia e o regresso das tensões inflacionistas, é incontornável a necessidade de olhar para esta crise aberta no flanco oriental da UE e analisar as condições que a envolvem antes de se procurar uma solução duradoura para o problema.
Uma solução que não pode deixar de ser negociada – não só pela situação de conflito aberto como pela de radicalização dos intervenientes – e que só conhecerá real e duradouro sucesso se for feita num ambiente de conhecimento mútuo. É por isso, de extrema importância que a informação abranja mais que a retórica política e a propaganda de guerra, que é o que a generalidade da imprensa insiste em divulgar, quando a realidade (comprovável) parece até bem diferente. Basta ler as explicações que Victoria Nuland, a Subsecretária de Estado para os Assuntos Políticos do governo Biden, para confirmar que a crise ucraniana pouco ou nada tem a ver com a Ucrânia, mas sim com a Alemanha e, em particular, o interesse americano em sabotar o oleoduto Nord Stream 2 que liga aquele país europeu à Rússia e que é visto como uma forte ameaça à primazia norte americana na Europa.
Perante o forte apoio da opinião pública alemã ao gasoduto Nord Stream, indispensável após a decisão germânica de encerrar as suas centrais nucleares de produção de energia, o governo norte americano optou por uma nova abordagem. Já que as sanções previstas não iriam funcionar optou por criar uma ameaça externa suficientemente credível – e nada melhor que reviver uma avalanche militar oriunda do Leste – para que a Alemanha se visse forçada a bloquear a abertura do oleoduto e não só… para o que basta recordar antigas declarações de George Friedman (especialista em geopolítica e questões estratégicas de origem húngara, fundador e presidente da Geopolitical Futures e ex-presidente da Stratfor), segundo as quais o principal interesse que levou os EUA a disputarem guerras – como as duas guerras mundiais e a Guerra Fria – tem sido a relação entre a Alemanha e a Rússia, que quando unidas serão a única força que os pode ameaçar.
Basicamente, os EUA não querem que a Alemanha aumente a sua dependência do gás russo porque o comércio cria confiança e esta leva ao incremento do comércio, ao fortalecimento das relações, à redução das barreiras comerciais e da regulamentação, aumenta o intercâmbio turístico, assim se criando uma nova arquitectura de segurança. Parcerias comerciais e estreitamento de relações entre a Alemanha e a Rússia reduzem o espaço e a necessidade de bases militares dos EUA, de armamentos e de sofisticados (e caros) sistemas de mísseis norte americanos, e torna a NATO redundante.
E, para piorar, este cenário foi ainda agravado com o fim da necessidade de negociar acordos de energia em dólares (confirmado com o anúncio da imposição do pagamento em rublos do gás russo, medida que), o que significa ainda a redução da obrigatoriedade de armazenar títulos do Tesouro norte americano para equilibrar as balanças. As transacções entre parceiros de negócios podem ser realizadas nas suas próprias moedas, precipitando uma queda acentuada no valor do dólar e uma mudança radical no poder económico. É por isso que o governo Biden se opõe ao Nord Stream. Não é apenas um oleoduto, é uma perspectiva de futuro… um futuro em que a aproximação da Europa e da Ásia numa enorme zona de livre comércio que aumente o poder e a prosperidade mútua, deixará os EUA de fora, com menor capacidade de influência e acentuando o fim da ordem mundial “unipolar” que estes supervisionaram nos últimos 75 anos. Uma aliança germano-russa ameaça acelerar o declínio duma superpotência já vacilante. É por isso que manter a Alemanha dentro de sua órbita se transformou numa questão de sobrevivência para os EUA.
É esta questão de sobrevivência que levou à escolha da crise ucraniana (questão que não se iniciou com a invasão russa de Fevereiro, antes remonta ao princípio do século e à instabilidade política gerada entre pró-ocidentais e pró-russos, que conheceu os seus pontos altos na chamada Revolução Laranja de 2004, no Euromaidan e na ocupação da Crimeia, em 2014, e na guerra civil que desde então decorre no Dombass) como opção para sabotar o Nord Stream e, na boa linha do princípio de “dividir para reinar”, erguer uma barreira entre a Alemanha e a Rússia.